As mulheres da FAG são feministas?

Nós, mulheres militantes da Federação Anarquista Gaúcha, somos metade da organização. A FAG, por ter uma tradição de 21 anos de constante movimento de crítica e autocrítica, somada à firmeza ideológica, tem se construído e se afirmado, passo a passo, como ferramenta de luta e organização das e dos de baixo que sonham em construir o Poder Popular e o Socialismo Libertário.

Em nossa militância diária, no que conceituamos como “frentes de inserção”, buscamos trabalhar o feminismo desde uma perspectiva transversal a todas as lutas nas quais estamos envolvidas, seja no campo sindical, estudantil ou de bairro, buscando incansavelmente o protagonismo (não só nas tarefas, mas também em todas as decisões políticas) da mulher nas lutas. Cada vez mais, percebemos o quanto o feminismo é necessário e precisa ser melhor desenvolvido junto às mulheres mais pobres, aquelas que moram nas periferias urbanas, no campo, nas aldeias, nos quilombos, nos assentamentos, nas ruas, nas ocupações.

Não militamos um feminismo acadêmico, fechado em uma zona de conforto que não dialoga com quem não tem acesso a certos espaços, a certas leituras e a certos bens culturais e tecnológicos. Também não defendemos o feminismo que atua através de determinados comportamentos, como se a forma de vestir, cortar o cabelo e comer definissem quem é ou não de luta, quem é ou não feminista. O comportamentalismo acaba por ser excludente, criando um grupo fechado em si mesmo, e que, via de regra, tem curta duração. Tampouco queremos fazer a defesa aqui de um feminismo genérico, que abarque – supostamente –  todas as mulheres da mesma forma. O feminismo é um conceito que nasce da esquerda, no calor das lutas sociais, e nele não cabem as mulheres opressoras, privilegiadas, pertencentes às elites, as grandes empresárias, as “socialytes”, mesmo sabendo que elas também sofrem, em certo grau, os efeitos do machismo.

Afirmamos, em outra oportunidade,que “Nosso feminismo será classista, ou não será”, mas não enxergamos esse “feminismo classista” como um conceito que vê a opressão sofrida por todas as mulheres de forma homogênea, até porque nosso conceito de classes oprimidas também não enxerga as e os de baixo, o povo, como um bloco monolítico. Negamos veementemente a existência de um único “sujeito revolucionário”.

Nosso conceito – classes oprimidas –  é no plural, como está bem expresso no nosso marco teórico FAU-FAG (Wellington Galarza-Malvina Tavares, de 2007), e olhamos da mesma forma para o feminismo classista, porque existe uma diversidade enorme de sujeitos oprimidos. Essa diversidade está muito fragmentada: estamos divididos entre diversas relações de trabalho (terceirizados,temporários, “free-lancers”,concursados, efetivados, cooperativados, precarizados, autônomos,desempregados, aposentados, etc); entre diversos tipos de moradia, localização geográfica, herança colonial, tipos de famílias, de religiões, de escolaridade, de raças, de etnias, de identidades de gênero, de orientações sexuais, de religiões,de gerações (idades), dentre muitos outros fatores que se multiplicam e se entrecruzam de forma exponencial.

Então, não há como definir um único sujeito revolucionário se há uma gama imensa de mulherese homens que sofrem, todos os dias, as opressões diversas do capitalismo; aquelas e aqueles que têm pouco ou nenhum privilégio. Assim, nós, anarquistas da FAG, definimos como “espectro de classes oprimidas” o conjunto de sujeitos que sofre os mais diversos tipos de opressão.

Por vezes, um mesmo sujeito acumula uma série de opressões, não como uma simples sobreposição entre padrões de dominação independentes, mas um entrelaçamento complexo de opressões e de dominações que se alimentam entre si e estão muito bem tecidos, tal qual uma teia que varia de desenho conforme os diversos fatores já citados.

Esse é o caso da mulher negra de periferia, que sofre as opressões de gênero, de raça e de condição econômica. A mulher negra e pobre é para quem a História mais deve direitos e é nas costas dela que a elite colonial, branca e rica construiu e constrói seus privilégios da forma mais violenta, perpetuando, até hoje, os mecanismos da escravidão: abuso sexual, negação de direitos, encarceramento, tortura e genocídio do povo negro. Na ponta do racismo e da opressão de gênero, estruturantes do sistema capitalista, está a mulher negra e pobre, trabalhando – ainda, desde a época da escravidão – nos serviços de limpeza e de cozinha, sem direitos trabalhistas, sem acesso aos estudos e tendo que assistir seus filhos serem assassinados 63 vezes por dia no Brasil.

De nossa forte herança colonial ainda sobrevive a torpe ideia de que a mulher negra deve servir ao homem branco, tanto na cozinha, quanto na cama. A ideia da “mulata sensual, tipo exportação” ainda é muito forte, e isso se converte na forma mais cruel de violência: uma mulher a cada uma hora e meia é vítima de feminicídio no Brasil, sendo que 61% delas são negras (IPEA). Em 2015, o Mapa da Violência contra a Mulher revelou que o feminicídio de mulheres negras aumentou 54% em 10 anos.  Além de todas as opressões a que estão sujeitas, as mulheres negras também são as maiores vítimas do turismo sexual e do tráfico de mulheres em nosso país.

Temos o entendimento de que é preciso sim ter espaços de construção de identidades coletivas entre nós, mulheres latino-americanas, mas também é importante haver espaços específicos para que a mulher negra e pobre possa se organizar, bem como a mulher indígena. São especificidades que precisam ser potencializadas e valorizadas, reconhecendo que ser branco em nossa sociedade, mesmo que mulher, mesmo que pobre, acumula privilégios e dá acesso a direitos que não estão ao alcance da mulher negra e indígena.

Esses espaços específicos também têm sido importantes na construção da luta LGBT. As mulheres LGBT também sofrem enormemente com o machismo e suas facetas: LGBTfobia e homofobia. Para a comunidade LGBT, a imposição de um ideal feminino e de um estereótipo de gênero como se fosse algo “natural” também mata: somos a nação que mais mata pessoas Trans no mundo! Com relação às mulheres trans, tudo que de pior é imposto às mulheres recai sobre elas: o mercado de trabalho é fechado para essas mulheres, que muitas vezes só encontram meios de sobrevivência na prostituição e no trabalho marginalizado. O PLC 122, que buscava criminalizar a homofobia, colocando-a no mesmo patamar que o racismo, foi sepultado no Congresso Nacional. Nesse antro de criminosos, a bancada conservadora e fundamentalista tem cometido as maiores atrocidades, engavetando projetos que poderiam beneficiar, ao menos em parte, a comunidade LGBT e as mulheres de uma forma geral.

Os de cima tem banido de seus espaços de poder – Congresso Nacional, Senado, Parlamentos em geral – qualquer debate que beneficie as mulheres. A pauta do aborto segue intocável, e as mulheres mais pobres seguem adoecendo e morrendo vítimas de abortos mal feitos. O Projeto de Lei proposto pela bancada evangélica do Congresso, que visa obrigar a mulher vítima de estupro a ter o filho do agressor e, ainda por cima, deixar o filho visitar o estuprador na prisão é de uma crueldade sem precedentes.

O Rio Grande do Sul é líder em número de tentativas de estupro, e o quarto estado no país em ocorrências de estupro. Entre 2015 e 2016, há o registro de um estupro a cada seis horas no RS, mas esses números por vezes não representam a realidade, já que a maioria das vítimas têm medo de denunciar, além de grande parte ser menor de idade. Em nosso Estado, ainda é forte a brutal ideologia de que é legítimo o pai “iniciar” a filha na vida sexual, o estupro legitimado por laços familiares, silenciado dentre as quatro paredes de muitos lares aqui no Sul, mas é mais corriqueiro do que aparenta. Dados estatísticos mostram: grande parte do abuso sexual contra as meninas é realizado por familiares.

Hoje, estamos sofrendo uma grande ofensiva neoliberal com características marcadamente fascistas e misóginas por parte dos de cima. Desde Trump nos EUA, passando pelo golpista Temer e a bancada (cada vez maior) evangélico-fascista do Congresso Nacional, chegando no RS com José Ivo Sartori e seus ataques às professoras e funcionárias de escola (mais de 77 mil mulheres trabalham em escolas estaduais do RS, recebendo um salário indigno e parcelado e sem as mínimas condições de trabalho) chegando em Marchezan Jr e Miki Breier, ambos recém assumindo, respectivamente, as prefeituras de Porto Alegre e Cachoeirinha e já inaugurando seus mandatos atacando servidoras públicas com spray de pimenta, socos e pontapés por parte dos homens de suas Guardas Municipais. Nessa escalada, o discurso único que ouvimos por parte dos governantes é o da necessidade de cortes, a chamada “política de ajustes”. A política de ajustes afeta, principalmente e de forma desumana, as mulheres mais pobres. Redução de salários, cortes em benefícios e em serviços sociais fazem com que alguns serviços deixem de ser prestados. E adivinha quem acaba assumindo esses serviços, de forma gratuita e acumulando ainda mais trabalho? A mulher, que hoje já é responsável por sustentar, sozinha, cerca de 40% dos lares em nosso país.

Uma das maiores atrocidades que está prestes a ser aprovada pelo Congresso Nacional é a Reforma da Previdência. No projeto do governo, a idade para aposentadoria do homem e da mulher será a mesma, 65 anos. O argumento é que as mulheres vivem mais do que os homens, hoje em dia. Entretanto, isso significa um enorme retrocesso. As mulheres, devido às constantes políticas de ajuste, estão acumulando cada vez mais trabalho. Por exemplo: quando o recurso do Hospital é cortado e leitos públicos são fechados, quem vai cuidar do idoso doente da família? A mulher. Quando não há vagas nas creches da região, quem cuida das crianças em casa? A mulher, e, muitas vezes, são as meninas mais jovens da família que fazem esse serviço para que a mãe possa trabalhar. Quando o marido fica desempregado, quem corre atrás de faxinas e outros bicos pra sustentar a família? A mulher. São exemplos de realidades cada vez mais comuns em épocas de “ajuste”, como a que estamos vivendo neste momento. Esse trabalho feito pela mulher é invisibilizado, mal ou não-remunerado e totalmente desvalorizado, por isso a idade de aposentadoria para a mulher DEVE SER menor do que para o homem. Igualar a idade de aposentadoria em um contexto de profunda desigualdade é decretar o aumento do adoecimento e da mortalidade da população feminina, especialmente as mulheres negras e marginalizadas.

Em nossa vida e militância diária, enfrentamos –  como todas as mulheres pertencentes às classes oprimidas –  o machismo, que revela sua face mais cruel nas angústias e dores das mulheres que são cotidianamente violentadas em seus lares, assediadas em seu trabalho, exploradas em casas de família, humilhadas nas revistas vexatórias, tratadas com desprezo quando buscam seus direitos ou os de seus filhos junto aos fóruns e defensorias. Ridicularizadas quando afirmam sua sexualidade, acusadas de fracasso quando choram por seus filhos assassinados pela polícia, abusadas quando saem para se divertir, abandonadas quando se afirmam no trabalho e rejeitam a lida doméstica, estupradas quando dizem não, espancadas quando criticam o alcoolismo do marido, tratadas como objeto sexual, acusadas de “autoritárias” quando defendem suas posições, chamadas de “loucas” quando abandonam a defensiva e partem para o ataque.

Entretanto, nenhuma das violências contra a mulher que apresentamos nesse texto têm ficado sem a devida resposta por parte das mulheres. Nas lutas das mulheres argentinas por “Ni una a menos”, das indígenas Mapuche e Zapatistas, das mulheres Curdas, da Marcha de Mulheres contra Trump nos EUA e em diversas partes do mundo, nas grandes marchas das Mulheres Negras no Brasil, nas ocupações estudantis de 2016 fortemente protagonizadas por meninas, nas greves cada vez mais combativas protagonizadas por mulheres, no grito de “Machistas, fascistas, NÃO PASSARÃO” que ecoa até mesmo no Carnaval brasileiro, as mulheres têm voltado a se organizar e retomar as lutas pra defender nossos direitos e conquistar tantos outros. A forte ofensiva fascista-neoliberal, especialmente nas três Américas, impõe às mulheres a necessidade urgente de lutar contra a retirada de direitos e contra as políticas de ajuste que pesam especialmente em nossas costas. Um belo exemplo é a Greve Internacional de Mulheres que está sendo chamada por mulheres de mais de 30 países ao redor do mundo, em um grito de basta tanto ao machismo quanto ao capitalismo, numa belíssima retomada do dia 8 de março como uma dia de luta por esquerda, nas ruas e nos locais de trabalho, de moradia, de estudo. O 8 de março que os de cima tentaram nos tirar, agora tomamos de volta.

O ano de 2017 e os próximos serão, com toda certeza, de muitos ataques, mas de muita luta também. Precisaremos de muita força para resistir, e por esse motivo, dedicamos esse texto à nossa querida companheira de luta, Tatiana Aparecida Zomer Almeida, ou simplesmente, Tati. Catadora, ponta de lança no trabalho de base na Vila da Paz, em Cachoeirinha, RS, mãe de 4 filhos, trabalhadora e guerreira, sempre presente nas lutas, estava se separando do marido porque ele não admitia sua participação política. Ela costumava dizer que, assim como não aceitava a opressão dos de cima, não ia aceitar a opressão dentro de sua própria casa. Era uma mulher que não tinha medo de enfrentar abertamente a violência doméstica, e muitas vizinhas a procuravam buscando conselhos e acolhimento na força de Tati. Mas o opressor estava à espreita, e no dia 29 de julho de 2008, o ex-marido assassinou Tati covardemente – ela estava chegando do trabalho e ele a atacou com golpes de facão, e ainda deixou um infame bilhete: “Não trai mais”. A nós, nos sobrou a raiva de não estarmos junto naquele momento pra defender nossa companheira, raiva que transformamos em mais energia pra lutar pra que um dia essa violência não mais aconteça.

Então, respondemos que sim, nós, mulheres da FAG somos feministas. Nossa força e nossa resistência tiramos de nossa fé nas mulheres de baixo, nas mulheres como Tati. Seguimos não depositando nenhuma esperança em governos, nenhuma fé em projetos de reformar o capitalismo. Para nós, já está mais do que comprovado que a saída é derrotar, na luta popular, o Estado e o capitalismo, duas faces de uma mesma moeda. A nossa luta é pela construção do Poder Popular, desde baixo. Por Tati, por todas nós e por sempre mais, somos feministas, classistas e combativas, anarquistas e especifistas.

TATIANA ALMEIDA, PRESENTE, PRESENTE, PRESENTE!

Federação Anarquista Gaúcha – FAG/CAB

 

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